terça-feira, 27 de janeiro de 2015


O exército de voluntários no Brasil já atinge a casa dos 20 milhões 


A agricultora Maria Neusa Gomes, paranaense de Borrazópolis, é bóia-fria em Corumbiara, no Estado de Rondônia. Até seis anos atrás, ela vivia com o marido, Osmar, e quatro filhos desnutridos num barraco de um cômodo. Sem condições de higiene, a família não tinha dinheiro para remédios nem para as roupas das crianças. "Eu só pensava em morrer", diz a agricultora. A história de Maria Neusa e de sua família começou a se transformar no dia em que bateu à sua porta uma voluntária. Ela pesou as crianças, ensinou Maria a preparar o soro caseiro para evitar a desnutrição e ajudou Osmar a arrumar emprego. Até então, a esperança de Maria Neusa era de que o governo fizesse alguma coisa. Atualmente, ela pensa completamente diferente. Vendo a mudança ocorrida em sua casa, Maria decidiu entregar-se àquele que é no presente o maior movimento de combate à mortalidade infantil - a Pastoral da Criança. Como assistida, tinha seus filhos entre o conjunto de 1,5 milhão de crianças com idade até 6 anos visitadas todos os meses pelas voluntárias da Pastoral. Agora, Maria Neusa é uma das 150 000 voluntárias mobilizadas para a tarefa. 


Existem hoje no país cerca de 220 000 organizações não-governamentais, a maioria dedicada à filantropia. Algumas são portentosas, como a Pastoral da Criança. Outras são mínimas, como a Serra Acima, que mantém quarenta crianças carentes da cidade de Cunha, no Vale do Paraíba, interior de São Paulo, e conta apenas com uma assistente social e meia dúzia de colaboradores, todos voluntários. Independentemente do tamanho de cada batalhão, o fato é que o exército da boa vontade é integrado atualmente por cerca de 20 milhões de pessoas. Esse número é espetacular e fica ainda mais espantoso quando se leva em conta que 47 milhões de brasileiros são crianças até 14 anos e 14 milhões têm mais de 60 anos. Ou seja, há 100 milhões de brasileiros entre 15 e 60 anos - destes, um em cada cinco está dedicando algumas horas do dia para ajudar alguém. 

Os soldados desse bom exército estão em todos os lugares: em ruas, escolas, associações, clubes e organizações não-governamentais. Em cada instituição, eles assentam alguns tijolos que ajudam a construir um Brasil solidário. Nos últimos anos vem crescendo o número de pessoas que entendem que é possível fazer diretamente, com as próprias mãos, alguma coisa pelas vítimas da miséria, do abandono, das doenças e do preconceito. Essa corrente solidária manifesta-se em uma quantidade crescente de projetos em favor de crianças de rua, populações carentes, portadores de deficiência e idosos. 

Há uma pesquisa realizada pela universidade americana Johns Hopkins com o Instituto de Estudos da Religião (Iser) que indica a existência de pelo menos 9 milhões de brasileiros atendidos por ano pelas instituições filantrópicas. Considerando-se que existem mais de 20 milhões de brasileiros vivendo com menos de 1 dólar por dia, a turma da boa vontade tem dado conta de assistir quase metade da camada mais carente da sociedade. Diferentemente da maioria das pessoas, aquelas que arregaçam as mangas se envolvem em trabalho assistencial na exata medida em que vão percebendo quanto o drama social do país é maior que a capacidade governamental de gerar respostas. A melhor maneira de enfrentar esses problemas parece ser ir à luta em vez de procurar os culpados. Um dos precursores dessa mobilização foi o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, que virou símbolo da campanha contra a fome. Lançada em 1993, ela apontou o caminho da solidariedade como única saída para dar aos mais carentes uma condição mínima de cidadania, no caso a própria sobrevivência. Claro que não basta ajudar os outros e deixar de pressionar os governantes, que arrecadam um terço do dinheiro dos brasileiros na forma de impostos, mas consomem boa parte dos recursos apenas para fazer funcionar o próprio corpanzil. É preciso votar direito e cobrar desempenho. Não há dúvida a respeito. A questão, no entanto, é que só reclamar já não basta. É preciso fazer. 

Oito anos depois de iniciada a campanha contra a fome, hoje é possível encontrar muitos exemplos de ações sociais transformadoras, que contribuem para atenuar os efeitos da desigualdade e abrem novas perspectivas de vida para os sem-esperança. Ninguém se engana com a idéia de que a filantropia e o assistencialismo, isoladamente, poderão eliminar a pobreza e a má distribuição de renda. Mas o trabalho de voluntários pode ajudar a diminuir o sofrimento de milhões de pessoas e salvar muitas vidas. Voluntários anônimos como Maria Neusa Gomes, bóia-fria de Rondônia que não tinha nada e hoje adiciona esperança à vida de quem não tem nada. Atualmente, a família de Maria Neusa mora em uma comunidade chamada Adriana, nome que homenageia uma das crianças da região salvas pelo trabalho da Pastoral. Mensalmente, os menores recebem atendimento com técnicas simples, como o soro caseiro - um pequeno milagre que fez despencar a mortalidade infantil no Brasil. Nas comunidades atendidas, morrem no máximo dezoito crianças a cada 1 000 nascidas vivas. Antes do início dos trabalhos, a média era duas vezes maior. 

Quando se buscam as razões que levaram os voluntários a entregar parte de seu tempo livre (ou todo ele, em muitos casos) a uma causa, surgem explicações variadas, em geral ligadas ao passado de cada um. Há os que perderam um amigo devido à Aids e agora assistem portadores de HIV, há os que tiveram um filho com síndrome de Down e fizeram da assistência aos portadores da deficiência uma meta de vida, não importa. Em comum, no entanto, todos estão preocupados em melhorar o futuro do Brasil a partir da melhoria da qualidade de vida daquele pequeno universo onde atuam. Outra preocupação coletiva é sentir-se bem. Isso mesmo. Na maior parte dos casos, a atitude solidária transforma e dá sentido à vida não apenas dos beneficiados como também à dos que estendem a mão. A violinista Márcia Maria Pires, por exemplo, dá aulas gratuitas de música a mais de 100 crianças de Natal, no Rio Grande do Norte. "Sinto-me recompensada em ajudar, assim como já fui ajudada um dia", diz Márcia. Aos 14 anos ela também teve aulas de graça. Hoje é integrante da Orquestra Sinfônica do Estado. A professora Araci Meirelles Silva, de Brasília, também atua como voluntária. Ela vai quatro vezes por semana ao Hospital de Base para cortar e pentear os cabelos e fazer as unhas dos pacientes das alas pediátrica e psiquiátrica. "Às vezes volto para casa cansada, mas sempre muito satisfeita", confessa a professora. 

Trabalhos como os de Márcia e Araci podem não mudar estatísticas, mas não é para isso que eles se realizam. A ação direta não existe para acabar com a miséria. O objetivo é mudar para melhor a vida daqueles que precisam de auxílio imediato. E a cada dia surgem novas formas de colocar essa idéia em prática. Em Franco da Rocha, na Grande São Paulo, a Aldeia da Esperança desenvolve há sete anos um conceito inovador de moradia individual para adultos com deficiência mental. São 45 residentes numa comunidade onde todos dividem as obrigações. Alguns trabalham fora, em uma lavanderia ou como lavadores de automóveis em uma concessionária. O projeto foi inspirado em uma comunidade de Israel onde 180 pessoas com distúrbio mental sobrevivem numa área que possui um hotel para animais e uma miniindústria de plástico. No Brasil, onde existem cerca de 4 milhões de portadores de deficiência mental, a idéia ainda está engatinhando. Os residentes cultivam uma propriedade de 17 hectares. Cerca de 30% não podem pagar e são mantidos por voluntários que contribuem com dinheiro e organizam eventos beneficentes. Alberto Aliperti Soares, um dos moradores, trabalha como tratorista e cuida de nove vacas e três cavalos. Ele também dá aulas de equoterapia aos colegas. A técnica de reabilitação à base de cavalgadas ajuda a relaxar e a desenvolver a força muscular, a coordenação motora e o equilíbrio. Amra Dragus, uma das alunas, pinta, tece e trabalha como auxiliar numa miniindústria de sacos de lixo, que colabora para cobrir os custos da comunidade. "Com apoio adequado eles podem se tornar auto-suficientes", comenta Anna Schvartzman, presidente do Centro Israelita de Assistência ao Menor, que mantém a Aldeia da Esperança e também o Centro de Educação e Desenvolvimento, com 110 crianças carentes. "Minha alegria é ver que as pessoas começam a aceitar a idéia da inclusão dos portadores de deficiência no mercado de trabalho, pois eles são capazes e podem ter uma vida digna", afirma Anna. "Eles namoram, casam e são felizes."

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